Cachoeira dos Veados via Sertão da Onça – Bom pra burro!
Data: 05, 06 e 07 de março de 2019.
Expedicionários: Rodrigo Milone e Gislaine Costa.
Relato: Rdmilone e Gislainensc
A Serra da Bocaina pode ser acessada por várias cidades, nós começamos a explorará-la via cidade de Bananal-SP. No começo do verão fizemos passeios rápidos como a cachoeira das Sete Quedas e um pequeno trecho da Trilha do Ouro na Reserva Ecológica. Fomos também nas Cachoeiras do Bracuí, do Rio Mimoso e em alguns mirantes, pernoitando uma noite por lá antes do ano novo.
A partir destas pequenas explorações, conversas com algumas pessoas da região, além de avaliação dos mapas e roteiros, começamos a pensar em outras possibilidades tais como: a Trilha do Ouro no Parque Nacional da Serra da Bocaina via São José do Barreiro; a imponente Cachoeira dos Veados e a tão falada Pedra do Frade. Ouvimos falar, também, da possibilidade de uma travessia via "Sertão da Onça'' (???) que daria acesso ao trecho final da Trilha do Ouro.
Pesquisamos mapas e tracklogs, conversamos com montanhistas que já haviam percorrido a região e traçamos nosso objetivo. Chegar até a Cachoeira dos Veados pela serra de Bananal.
Nossa rota incluía:- a subida de carro pelo asfalto
- uma possível passagem pela estrada de terra que liga o alto da serra até a Cachoeira da Onça
- deixar o carro antes ou depois da cachoeira
- descobrir o início da trilha e
- desbravar o caminho absolutamente desconhecido por nós e frequentado apenas pelos tropeiros e nativos da região.
Tínhamos apenas algumas informações fornecidas pelos amigos Erick Eas e Claudio Murilo que já haviam feito algumas caminhadas por ali. Um ponto de dificuldade nesta exploração foi conseguir informações concretas que nos possibilitassem a chegada ao início da trilha.
Dicas tipo: “Passando pela baixada, ali aonde vira à direita que sai no Jardins, dali começa! Pega a trilha!” , eram fornecidas pelos moradores da região, mas não ajudavam muito.
Enfim, seguimos sem saber direito se o carro chegaria, se a estrada estava boa e se a chuva persistente nos últimos dias permitiria uma passagem tranquila. Escolhemos sair na terça de carnaval pois a previsão para os dias anteriores era ruim, com apenas uma janela sem chuvas na quarta e quinta. A Serra da Bocaina nos impressiona pela quantidade de rios e vales, as chuvas são quase diárias durante o ano todo. O destino principal são as belas cachoeiras e, os pontos de descanso geralmente algum recanto escondido na beira dos cursos d’água. A exuberância da mata só é cortada por trechos de pastos com criações e porteiras, tendo sido região de grandes fazendas de café que posteriormente se tornaram pastos.
Ao fim e ao cabo, a estrada estava ruim, mas boa. O carro atolou, mas passou! Saímos de Bananal as 07 h e chegamos à Cachoeira da Onça antes das 10 h. Aquele banho refrescante que nos deu energia para enfrentar o que nem imaginávamos.
Foto: Cachoeira da onça
Até conseguirmos estacionar o carro em um local tranquilo foram mais duas horas, passou um senhor a cavalo e disse “ chegando na fazenda ali na frente onde tem um monte de régua branca, entra no curral, vira a esquerda e daí cumeça!.” Mais à frente uma mulher que estava tratando gado nos disse que podíamos passar a porteira, seguir até a “onça”. Mas que diabos de onça é essa?! Pensávamos! Vimos então que o “Sertão da Onça” como é conhecido na região é o final do vale, tem uma pequena vila e uma escolinha obviamente chamada de “Escola da Onça”, onde as crianças devem ser as “oncinhas” (hahahahaha). A cada curva na estrada avaliávamos se seria fácil subir de carro na volta, pois estávamos em um Gol velhinho com motor 1.0. Conseguimos passar todos os trechos piores de pedras e ladeiras barrentas, estacionar em frente à escola, mas não sem medo de ter que deixar o carro por dois dias (sem saber que seriam na verdade três dias). Enfim, começamos a descida mais ou menos às 12:30 h de terça-feira. Depois disto o bicho pegou, as indicações que tínhamos chegavam somente até aí, mas uma dica valiosa de última hora de um morador da “onça” foi: “ logo depois do rio pega pra esquerda, senão vocês vão parar em Barreiro”, e ainda “ vocês tão animados hein!”.
Foto: Vista da ponte de concreto sobre o rio Mambucaba.
Passamos pela ponte de concreto, por cima do rio Mambucaba, e tomamos um outro banho refrescante. Depois toca a andar pelo vale, passar por porteiras, trilhas de tropeiros, caminhos de bois e nada de chegar na famosa Trilha do Ouro. Passando das 17 h começamos a pensar na possibilidade de acampar onde desse. Haviam algumas casas abandonadas na região e pastos nada acolhedores, cheios de búfalos e carrapatos.
Foto: Vista do Vale.
Foto: Casa velha no meio do caminho.
Foto: Vista do Vale.
A chuva começou a castigar, molhar as mochilas e fomos cansando. Às vezes ligávamos o celular para tentar verificar a nossa posição em relação à Trilha do Ouro, mas o Wikiloc (por falta de experiência ou algum outro motivo) não nos mostrava. Seguimos o vale do Mambucaba paralelo à trilha que devíamos encontrar em algum momento. Enfim, às seis e meia da tarde, depois de caminhar mais de dez quilômetros, começamos uma subida que se distanciava do rio e levava a um cume à direita. Chegamos em um morro e vimos uma fileira de pinheiros com mato baixo, passamos o arame farpado e subimos este morro com o resto de luz do dia, molhados, intencionando montar a barraca e recomeçar a caminhada no dia seguinte. Ao chegar no alto vimos três casas e um pasto...Ufa! Descemos até uma das casas e uma senhora nos indicou um lugar para acampar passando outro riozinho...
Hahahaha, a passagem era uma tora nivelada na parte superior com um corrimão de tronco...muito característico da região, estávamos ali no local chamado Fazenda Central.
Tínhamos uma boa janta, molho pronto de carne moída que fizemos com dois miojos. Tomamos um banho de rio, lavamos os sapatos embarrados, montamos um varal e fomos dormir exaustos. O dia seguinte ainda nos reservava a caminhada até a Cachoeira dos Veados e a volta subiiiiindo o rio Mambucaba. Para nossa sorte, depois de acordarmos, um senhor nos ofereceu para montar a barraca no seu terreno e uma “ajuda”, faria um almoço para nós em troca de algum dinheiro: “quanto você dá para uma comida dessas, num lugar desses?!”... “se tratou tá tratado né”...“você ganha e eu ganho”; além do famoso “eu tô aqui para ajudar, você me ajuda e eu te ajudo”. Combinamos o almoço para depois da cachoeira e foi nossa salvação, afinal o nome do senhor era Salvador.
Foto: Ponte de tora no caminho para a cachoeira.
A Cachoeira dos Veados é exuberantemente linda. A nossa ideia inicial era ficar apenas meia hora na cachoeira, voltar para arrumar a barraca, fazer um lanche rápido e subir de volta até o Sertão da Onça. Tendo combinado o almoço com o Salvador pudemos aproveitar ao máximo a quarta-feira de cinzas na cachoeira e ficamos umas duas horas só desfrutando daquela paisagem. Assim, voltando a trilha, passaríamos mais uma noite acampados e faríamos o trajeto de volta com calma na quinta-feira.
"Vejam, não encontramos ninguém na trilha do dia anterior, ninguém durante a manhã e ninguém estava lá na cachoeira."
Foto: CEC na Serra da Bocaina.
A ida da altura da Fazenda Central até a Cachoeira dos Veados é muito tranquila, cerca de 4 km descendo a Trilha do Ouro. A volta pelo mesmo caminho foi agradável com as mochilas mais leves e o coração amansado.
Foto: Trilha do ouro.
A trilha do ouro na Serra da Bocaina foi uma rota de escoamento do ouro no Brasil. O calçamento, ainda presente durante parte do trajeto, foi construído pelos escravos entre os séculos XVII e XIX, a partir de trilhas dos índios Guaianazes (Fontes diversas de pesquisa).
Como toda sorte vem acompanhada de algum azar, alguma surpresa estava guardada. Na volta da cachoeira, após o almoço muito bem servido, o nosso "Salvador" não nos deixou em paz o resto do dia e da manhã seguinte. Cada vez que olhávamos pro lado ele estava lá, queria levar a nossa mochila de volta no lombo do seu burro, ofereceu para levarmos um grupo pra lá. Carente e atencioso ao mesmo tempo. Toda vez que ouvia o barulho de fecho-éclair da barraca, lá estava o Salvador. “ Fazê amizade é bom né!”. Pagamos somente R$ 60,00 pelo almoço, ganhamos dois pernoites e uma penca de bananas, além do cafezinho na quinta-feira de manhã. Fizemos planos com ele de levar um grupo grande ainda neste primeiro semestre, o que o deixou animado, confiante e feliz. Escrevemos nosso contato no seu livrinho, "num sei lê não, mas tem uma sobrinha que mora lá em Perequê e sabe". E olhava o livrinho bem de perto pra ver as letras. Durante a noite tentamos escorrer um pouco as roupas molhadas e nos preparamos para uma volta mais tranquila no dia seguinte.
Foto: Ao centro está Salvador (elegantemente vestido segundo rdmilone) e de verde está o morador da casa vizinha que disse: "já fui até a cidade uma vez, mas a água lá é quente e cheia de cloro, não dá pra beber". Sábias palavras!
À direita Milone e sua mochilinha pack''light'' pronta para a volta.
Quinta-feira de manhã, tudo arrumado para a volta, passamos então na casa da senhora que nos indicou o local para acampar. Dona Carmem é a irmã mais velha do Sr. Salvador, está ali "plantada" desde que nasceu. Retrato em vida da Serra da Bocaina. Uma Senhora de 85 anos (ela acha) que criou sozinha seus 6 (ou 8) filhos. Seu marido faleceu quando o último deles tinha apenas seis meses. Ela contou que caçava sapos (ou rãs) para alimentá-los. Mostrou com orgulho a foto de uma senhora centenária, talvez descendente de escravos, que apareceu ali e ela cuidou até o fim dos dias. Que prazer conversar com Dona Carmem! Seu pequeno sítio hoje em dia tem uma cria de leitões, galinhas, patos e queijos maturando na varanda. Faltam remédios e roupas novas, mas ela diz que não precisa de mais nada. “Vou ficar aqui até o final”.
Foto: Dona Carmem.
Foto: Senhora centenária, "tinha 124 anos, aí veio um elicópto e levou ela". Reprodução do quadro que dona Carmem mostra acima.
Foto: "Tropeiro velho" no meio do caminho.
A volta nos reservou um dia maravilhoso de sol subindo o rio Mambucaba. Caminhamos rápido apesar do calor e das dificuldades da trilha. Paramos para um almoço regado a miojo em uma das casas vazias ao longo do caminho. Seu Salvador disse que os moradores foram indo embora, os filhos não ficam e as casas ficam abandonadas. Caminha, caminha, sobe, sobe, atravessa o rio e nunca chega! Demoramos 6 horas até a Escola da Onça. Nosso maior alívio foi ver o carro e tirar as mochilas e sapatos enlameados. Ufa! Ainda tivemos tempo de tomar um banho na Cachoeira da Onça e duas cervejas na Estalagem da Bocaina antes de pegar o asfalto e descer a Serra.
Chegamos de volta em Bananal ao anoitecer ainda maravilhados com as belezas vistas pelo caminho, ansiosos para recarregar os celulares para rever a nossa aventura pelas fotos.