El Cruce para montanhistas

Por miguel

Comentários de um montanhista sobre El Cruce Columbia 2014

El Cruce de Los Andes - O Original!

El Cruce de Los Andes - O Original!


Antes de mais nada um aviso: eu não completei o Cruce 2014. Fizemos o primeiro dia, dormimos no acampamento, acordamos no dia seguinte e depois do café da manhã pedimos um taxi e nos mandamos. Ainda assim,acho que posso compartilhar alguns comentários úteis para outros montanhistas que estejam considerando fazer El Cruce algum dia...

Eu e Cris (Ana) resolvemos nos inscrever no Cruce depois que uma amiga colocou pilha (ela completou super bem). O plano parecia muito bom: fazer uma trilha em um lugar com paisagens sensacionais, apenas carregando uma mochila leve e chegar em um acampamento com barraca montada e comida pronta. Luxo total. Coisa de patrão :-)

Acampamento do Cruce

Jorgen, Roberta, Cris, Miguel e as 750 barracas montadas no acampamento. De patrão :-)

Beleza, só que o Cruce é uma corrida. Uma corrida de montanha de cerca de 100km em 3 dias. É pesado. Pessoas treinam forte durante meses para fazer isso (o Fred disse que amigos dele estavam treinando 6 dias por semana durante mais de 8 meses). Enquanto isso, nosso treinamento foi meio mais ou menos... Vimos que caminhando rápido seria tranquilo ficar abaixo do tempo de corte da competição sem ter que correr. A Cris já fez algumas maratonas, mas eu sei que se tentasse correr essa distância toda eu certamente me lesionaria (tive canelite no ano passado por causa da corrida). Por isso, priorizamos caminhadas bem longas nos fins de semana e tivemos companhia e suporte dos amigos do Carioca: Claudão, Cris Jorge, Maicon, Hernando...

Os problemas começaram quando a data da prova foi se aproximando... a previsão do tempo era apocalíptica! Em Santiago, pensamos seriamente
em mudar os planos e ir conhecer o Atacama (o Cruce não estava totalmente pago). Mas a previsão de 3 dias seguidos com 30mm/dia melhorou um pouco: 20mm no primeiro dia, quinta-feira, começando sem chuva e piorando ao longo do dia, e chuva fina o tempo todo nos outros
dois (~1mm/3h). Decidimos encarar. Detalhe: na terça antes do Cruce, dia em que chegamos em Puerto Varas, choveu entre 60-80mm. Obviamente
trilhas e rios já estariam previamente bem "caprichados".

A organização do Cruce faz uma lista bem legal de equipamentos obrigatórios para levar na mochila. Além de anorak e fleece/polar (o Cruce fornece um) tem também a manta térmica, segunda pele (também fornecido) e até saco de bivaque (um por dupla). A ideia é que se você se perder do grupo e tiver que passar a noite na montanha você não morre. Parece justo. Mas vendo a mochilinha dos corredores é bem claro que a maioria não leva os itens obrigatórios... Mas tá certo, afinal são todos maiores de idade!

Ai tem realmente uma questão interessante: a infraestrutura do Cruce te permite arriscar muito mais, com menos comprometimento. Alguns corredores que negligenciavam o bom anorak ou a roupa térmica para ter menos peso faziam isso de forma consciente, para testar seus limites. O Cruce tem pessoas em pontos estratégicos, alguns com acesso de carro, para poder tirar da montanha quem estiver tendo um treco. Outros corredores sem anorak etc simplesmente não tinham muita ideia de onde estavam se metendo.

Conhecemos uma brasileira na largada que tinha comprado aquele anorak North Face que é super-leve (dobrado fica do tamanho de uma barra de proteína). É um anorak excelente (eu tenho um) mas não é o que eu levaria para atravessar os Andes. Disseram pra ela que esse é o anorak que se usa para correr... bem, ok, mas... Expliquei rapidamente pra ela: aquele anorak não é 100% impermeável, se você pegar uma chuva forte a água vai passar, você TEM que ter um isolante embaixo. Assim fica na boa, é até surpreendente como pode o fleece mesmo molhado ficar quentinho (embora pesado), você não sente frio. Estilo "soft-shell". Mas se deixar ele molhado e colado no corpo, ai não funciona tão bem... Não sei se ela seguiu minha dica (acho que não), e soubemos que ela teve um princípio de hiportermia...

Um médico do Cruce nos contou que eles tiraram muitos corredores com hipotermina nesse primeiro dia. Também pudera, a largada foi na beira de um lago, já com os primeiros pingos de chuva, em seguida subimos a encosta do Osorno e aí ficou realmente frio. Vento forte, chuva forte com um pouco de granizo fino, em um chapadão totalmente exposto. Visibilidade de 10m. Mesmo com fleece, gorro e anorak ainda estava bem frio, provavelmente próximo de zero, as mãos ficavam dormentes e para falar a boca já não articulava muito bem. Condições duras, mas montanha é isso aí! Foi uma das partes que mais gostamos :-) Nos disseram que muitos dos que saíram com hiportermia não tinham nenhum impermeável, previsível.

Na descida do outro lado do Osorno chovia menos. Inclinação e piso perfeito para uma corridinha de 5km. Daí em diante foram 12km de lama, aquela lama clássica, bem mole, onde se afunda o pé até a canela. Cansativo, mas pelo menos parou de chover. Algumas travessias de rios e charcos com água acima do joelho.

No meio disso tudo, algo surreal: tivemos que esperar uma hora e meia numa fila, parados, com frio, no meio de uma florestinha. A Cris e várias outras pessoas tremiam incontrolavelmente. Algumas abriram a manta metalizada para se abrigar. Principio de confusão. Gritos do tipo "hay cola (fila)!". O motivo de tudo isso era um barranco de 3 metros de altura que terminava em um rio, com uma corda fixa para descer.

Primeira fila do Cruce

Fila do primeiro dia do Cruce para passar um obstáculo na borda do lago. Essa foi rapidinho.

Nessa hora é que caiu a ficha que eu estava fazendo uma trilha com nada menos que 1500 pessoas! Se tivessem 1000 pessoas na minha frente, quantas delas iriam empacar num lance desses? É surreal... É loucura fazer algo assim... Fiquei pensando "pô, mas os caras organizam essa corrida todo ano (em trilhas diferentes), será que eles não tem a capacidade de identificar um ponto de retenção desses?" E aí se prepara, minimamente coloca duas cordas (e não apenas uma) para paralelizar a descida. Sem falar que a corda era fina, podiam fazer também aqueles nós para ajudar quem não está acostumado etc... Ponto positivo: o próprio diretor da prova foi pra este lugar e ficou se f... junto com todo mundo, segurando a corda, dando instruções e
botando pilha para as pessoas descerem mais rápido. O cara gosta da ralação, não é nenhum um almofadinha de escritório.

Ao final do dia (quinta) fizemos mais do que os 39km previstos (foram 42 ou 43km dependendo do GPS) em 10 horas de atividade. Foi puxado, uma boa ralação, chegamos meio quebrados e com dores nas pernas... está entre as excursões mais pesadas que já fiz, mas certamente não foi a mais puxada. Já fizemos coisas mais exaustivas. Ouvi o vencedor da categoria solo dizendo que em 20 anos de corrida de aventura nunca havia pego nada parecido com aquela lama. Os organizadores definiram este Cruce como "duríssimo" e fizeram alterações nas etapas seguintes: a categoria solo teve o segundo dia reduzido para 18km, e o último dia, que seria o mais bonito andando por uma cumeada do Vulcão Casablanca, foi modificado e passou apenas ao lado do vulcão, descendo logo em seguida. No total, foram tirados 8km da categoria de equipe e 21km da categoria solo.

Sinceramente? Achamos que não valia a pena gastar o resto das férias caminhando naquelas condições, sem visibilidade nenhuma, e aí resolvemos cair fora. Conseguimos pedir um taxi que foi nos buscar no acampamento e voltamos para Puerto Varas comer um bom salmão e dormir em um hotel.

No dia seguinte (sábado) alugamos um carro e fizemos uma caminhada por uma trilha dentro de vegetação belíssima, no vale do rio Cochamó. No final há o abrigo de La Junta, um lugar paradisíaco para escaladas, muito bem definido como o Yosemite chileno. Ficamos muito preocupados com a notícia de que este vale poderá ser totalmente inundado para construção de uma hidrelétrica, será uma perda irreparável. Com esse bate e volta acabamos fazendo mais 26km, sendo que não pegamos chuva (a previsão de Cochamó, mais ao sul era bem melhor que a previsão de Antillanca, onde estava sendo realizado o Cruce). 

La Junta - Vale do Cochamó 1

Abrigo antigo de La Junta, vale do Cochamó.

La Junta - Vale do Cochamó 2

La Junta, Conchamó: para todos os lados paredes maravilhosas para escalar!.

No domingo fomos para Antillanca, onde estava acontecendo a última etapa solo do Cruce, já com tempo bom. Segundo a organização, o trajeto original pelo Vulcão Casablanca não poderia ser feito pois havia 50cm de neve... Caô... Subimos o início pela mesma estrada em que o Cruce tinha acabado de passar, a partir da estação de ski, mas logo deixamos a trilha para subir o Vulcão Casablanca. Como não achamos uma trilha muito definida fomos procurando os melhores caminhos na encosta do vulcão e subindo. O cume é espetacular! Há uma urna com livro de cume e o visual dos vulcões Osorno, Calbuco, Pontiagudo, Peyehue, sem falar no Cerro Tronador... É demais, muito bonito mesmo.

3o dia do Cruce e Vulcão Casablanca

O cruce seguiu para a esquerda. Subimos o Vulcão Casablanca que aparece no meio da foto.

Descendo do Vulcão Casablanca

Descendo do Vulcão Casablanca... Onde o Cruce não foi...

Alguém pode argumentar que não gostamos do Cruce por causa do tempo ruim, e que ele é um fator imprevisível quando se marca uma viagem com meses de antecedência. É verdade, mas sempre que marcamos uma viagem temos uma folga de alguns dias e uma certa flexibilidade com relação ao que vamos fazer. Quem vai para o Cruce tem ZERO flexibilidade. Não pode atrasar a saída para a montanha em um dia para evitar de pegar um tempo estupidamente ruim, é obrigado a enfrentar todos estes imprevistos com uma resignação bovina indo para o abate.

Acho que os 800 dólares da inscrição podem ser muito mais bem aproveitados fazendo excursões na montanha nos melhores dias e até contratar um guia se for o caso. Ok, o kit da Columbia é legal (o fleece é bom, o resto é mais ou menos: a segunda pele, a camisa, caneca, bandana) mas ninguém vai pagar 800 dólares por causa disso...

Fazer uma travessia em um país diferente é sempre complicado, geralmente um dos lados não tem transporte fácil. O Cruce resolve essa logística pra você, mas nada que não seria possível resolver contratando um taxi pra te levar ou buscar em algum lugar.

É claro que o Cruce tem pontos bons: é o desafio, é o acampamento que apesar das 1500 pessoas tem um astral muito bom e funciona bem, é o suporte que te permite arriscar mais e testar seus limites, é o fator competição que motiva.

Circo refeitório

Na tenda de circo ficava o refeitório... Enquanto isso a comida era preparada em outro lugar...

Churrasco

Churrasco no almoço e no jantar para 1500 pessoas!

Mas te prende numa data que você não pode mudar, te coloca numa trilha com 1500 pessoas que podem empacar na sua frente, e isso sem falar nas várias coisas erradas de organização que podem acontecer (e realmente acontecem) como perderem a tua mala e você ficar sem roupa seca e saco de dormir etc.

Prós e contras, foi uma experiência interessante, mas pra mim não vale a pena. Cruce 2015, tô fora! :-) Para todos aqueles que completaram, meus sinceros parabéns! Vocês são f! Temos amigos que fizeram o percurso de nós fizemos em 10 horas na metade desse tempo, é realmente impressionante!

Miguel Freitas

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