Tio Zé - Bernardo Collares

Por miguel

Vou falar uma coisa polêmica. Bernardo Collares Arantes se quisesse poderia ser um executivo de empresa, daqueles que aparecem na revista Exame ganhando muito dinheiro. Ele mesmo não concordaria comigo, mas posso garantir, ele era um dos caras mais inteligentes que já conheci. Não é aquele tipo de inteligência de quem é gênio em matemática, finanças, nada disso... Mas sua capacidade de resolver milhares de problemas ao mesmo tempo sempre foi fora do comum, qualquer empresa pagaria uma grana por um cara assim. Mesmo discordando de mim, no fundo, no fundo, o Tio Zé sabia disso e deu as próprias cartas, escolheu tudo que ele queria fazer da vida.

O Bernardo virou Tio Zé numa viagem ao Cipó, depois de dar o apelido de “Micuim” ao... Micuim! Apelido pega quando o cara não gosta. “Ah é? Vai ficar me chamando de Micuim? Então a partir de agora só vou te chamar de Tio Zé!”. Eu não estava nessa viagem, mas nela, como em várias outras depois, o Bernardo era um “tiozão” da galera mais nova que vai pra montanha. Eu, por exemplo, tinha 17 anos quando fiz o Pão de Açúcar com ele, na última aula do Curso Básico de Montanhismo. Mas ele mesmo começou com quase 30, e só pra deixar o Micuim ainda mais revoltado, gostou do apelido.

Realmente o apelido era bom. O Tio Zé poderia muito bem ser aquele tio gente boa que você encontra depois da escalada pra tomar uma cerveja... Sim, porque você não vai querer contar pra sua mãe o perrengue que passou na via, mas pro tio você pode contar... Ele vai curtir e vocês vão dar boas gargalhadas... Tio Zé... Faz sentido.

Poucos poderiam mandar um email pra lista do clube, em pleno dia de semana, só pra dizer como estava boa a pedalada na orla e o banho de mar... Isso, claro, sem parecer que estava tirando onda. “A gente aqui trabalhando e o cara na boa vida?” Pois é, só que tem um detalhe: no caso do Bernardo o tempo que ele não estava no cartório ele realmente estava deixando de trabalhar e de receber. A velha questão “será que vale a pena trabalhar tanto e não ter tempo pra curtir o dinheiro?” pra ele não era uma pergunta retórica. Era uma escolha que ele demonstrava ser possível fazer hoje e todos os dias. Por que não? É você quem decide as amarras da sua vida, quais são suas prioridades e os seus sonhos.

Começamos uma brincadeira na época em que eu escalava com mais frequência no Carioca, o telefonema do cume. Sempre que alguém terminava uma escalada e chegava num cume (onde pegasse celular, é claro, já que a cobertura era muito ruim) ligava pros amigos pra curtir com a cara deles e gritar “cumeeee!” pelo telefone. Às vezes pegava o cara no meio do trabalho... “Ok, ok, você venceu... tira uma foto ai e espera só o próximo fim de semana que você vai ver!” E a brincadeira virava motivação. Uma razão a mais pra escalar e chegar num lugar maneiríssimo, só pra poder ligar pro Tio Zé e dar troco...

Com o tempo, como ele manteve a frequência e começou a fazer montanhas cada vez mais sensacionais, ficaria muito humilhante se ele continuasse a me ligar de todas elas... Ai ele foi trocando as ligações por relatos por email, palestras e projeções de fotos... Isso tudo foi muito bom. Assim muitos outros montanhistas puderam aproveitar essa motivação e vontade de viver a vida. A disposição do Tio Zé era algo verdadeiramente contagiante... Quantos não se alimentaram dessa energia? Quantos não resolveram sair do sofá, da rotina ou da frente do computador pra ir fazer uma atividade ao ar livre? Muitos, posso garantir.

Tudo bem que uma ligação internacional de celular é caro mas... Não tem preço! Da China, eu e Marcelo Roberto resolvemos ligar de um cume improvável... Eram duas da manhã no Brasil e o Tio Zé atende com voz de sono de quem estava dormindo... -Cumee!! -Que cume o quê, vocês foram à China a trabalho que eu sei! -Cume sim! Cume da Muralha da China!! E caímos na gargalhada... De Bariloche, no meio da travessia dos refúgios com a minha esposa Cris, um visual sensacional e... quem diria, sinal de celular?! Perfeito, mais uma ligação pra compartilhar com ele o prazer de estar ali... Uma conquista com o André Ilha e o Sandro no interior da Bahia? Na cidade não pegava celular, mas do cume tinha um tracinho de sinal e a mensagem pro Tio Zé era obrigatória.

Pra mim e para muitos ele era o ponto de referência, você ligava pra brincar, compartilhar e também pro Tio saber onde é que os sobrinhos estavam e o que eles estavam fazendo de bom... Sei lá, vai que acontece alguma coisa? A Patricia Duffles resumiu bem isso contando como a irmã dela tinha uma ordem expressa “se acontecer algum acidente comigo na montanha, você não liga pros bombeiros não, liga pro Bernardo.” Era óbvio. O Bernardo era o cara, era quem a gente podia confiar para fazer o nosso resgate. Ele estava sempre sabendo onde as pessoas estavam e, em mais de uma ocasião, saiu correndo de casa no meio da noite pra ir na montanha salvar os amigos (de verdade). Quando a Patty lembrou essa história do resgate e, olho no olho, me perguntou “e agora? quem é que a gente vai chamar quando precisar de ajuda?” Impossível não chorar com ela.

Poucos dias antes do acidente eu estava com o Claudão na base de uma escalada filosofando (como diria o Mochileiro das Galáxias) sobre a vida, o universo e tudo mais... Concordamos com uma afirmação tão simples quanto ingênua: pra que serve você se dar bem na vida, senão pra poder ajudar as outras pessoas? O Bernardo era o exemplo perfeito disso, sendo que pra ele, “se dar bem na vida” significava na verdade “estar de bem com a vida” e não a associação material que normalmente fazemos... “Um espírito elevado”, definição do Claudão. Concordo com ele.

Dos acertos informais que ele parecia ter no cartório, os mesmos que permitiam ele ficar dois meses sumido pra escalar na Patagônia sem ganhar nada mas também sem ser demitido, vale lembrar de um outro: o Bernardo era quem recebia aquelas “roubadas sociais”, aquelas certidões que o cartório é obrigado por lei a emitir por uma merreca, ou de graça, pra quem não tem condições de pagar. Como as pessoas não costumam trabalhar de graça, sempre que chegava alguém assim no cartório era o Tio Zé que tinha que resolver. Uma vez chegou lá uma cara humilde cuja filhinha tinha morrido em São Paulo na fila do transplante. Se ele não conseguisse uma certidão de óbito ela seria enterrada como indigente. A situação era complicada, o cara estava perdido pois se nem o dinheiro da certidão ele tinha, como é que ele ia conseguir fazer o translado do corpo? O Bernardo explicou o que ele tinha que fazer e pagou pro cara ir resolver tudo em São Paulo, sem nunca ter visto o cara antes. Um ano depois ele voltou no cartório pra agradecer e começou a chorar quando contou que graças ao Bernardo ele tinha conseguido enterrar a filha dele... Como ele disse na época, aquilo foi “mucho loco”.

Quem estivesse bebendo uma cerveja pela primeira vez com ele corria o risco de ouvir uma explicação em tom sério “você já percebeu esse material novo que eles estão fabricando essas latinhas, repara só aqui como é leve, resistente...” O incauto terminava com uma lata na mão, procurando em volta onde é que estava o lixo mais próximo pra poder jogar fora... Diversão garantida. “Bernardo, você não cresce não?” alguém podia perguntar, sem espírito esportivo ou sem conseguir rir de uma bobeira dessas... Mas crescer pra quê, se as mesmas pessoas continuavam a cair na brincadeira, anos e anos depois, por pura distração? Só rindo mesmo...

Fiz com o Tio Zé muitas das melhores escaladas da minha vida. Conheço vários escaladores que podem falar o mesmo, porque sei que ele levou muita gente pra fazer muita montanha maneira. E eu tenho certeza que todos eles sabem o que é isso, como é forte a emoção de compartilhar uma grande escalada com o seu amigo. E como é devastadora a perspectiva de não poder fazer isso de novo.

O Bernardo viveu intensamente. Se preparou, treinou, devorou os livros de segurança em montanha do Pit Schubert e encontrou uma companheira que compartilhava com ele não apenas a técnica mas também essa imensa vontade de viver. Poucas coisas me confortaram nos últimos dias. Uma delas é ter certeza que meu amigo Bernardo está em paz, no lugar maravilhoso que ele queria tanto ir e que quando ele disse para Kika que ela deveria descer essa era a única coisa que eles podiam fazer. A outra é saber que minha amiga Kika é realmente uma montanhista extraordinária, guerreira, que conseguiu sair viva daquela situação, coisa que poucos conseguiriam fazer sozinhos, e a nossa perda não foi ainda maior.

Se hoje, cinco dias depois da notícia da tragédia, eu consigo escrever alguma coisa é porque o apoio dos amigos tem sido fundamental pra entender e aceitar isso tudo. E todos são unânimes em afirmar que a maior vontade dele agora seria que seguíssemos batalhando, encarando as dificuldades e aproveitando as coisas boas como ele aproveitou.

Ainda assim, não consigo esquecer as poucas palavras que mandei, em meio a um choro quase convulsivo, no dia da notícia para avisar aos amigos do Carioca: “Alguém vai mandar uma mensagem com os detalhes que eu não tenho. Não me perguntem. Não estou arrasado só de perder um grande amigo. Eu estou triste pra caralho porque o mundo perde uma pessoa deixava ele melhor”. Que o Bernardo nos inspire a também fazer um mundo melhor.

Abraços,

Miguel Freitas

09/01/2011

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